terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O prazer de falar de comida com a boca cheia

     Uma verdadeira mesa portuguesa é uma reunião de pessoas e prazeres. Ao contrário desses aborrecidos países nórdicos, ou simplesmente organizados, que acham que a comida está para o Homem como o "gÁsoile" para o carro, o português faz parte dessa lista de povos que se sentam à mesa para comer... enquanto sonham com comida.

    
     Numa mesa portuguesa (por definição cheia de gente, desde família a amigos e amigos dos amigos) em cada dez conversas, nove são dedicadas à "comezaina". Mesmo com o estômago entupido até ao esófago com feijão, arroz, mão de vaca, sola e tripas de porco; mesmo que estejamos à beira do colapso cardíaco de tão inchados, pesados, enfartados, afrontados e cheios; mesmo que estejamos a arrebentar pelas costuras como uma boa alheira de Mirandela (Uiii! que bem marchava uma alheira a seguir a este galão); mesmo com o corpo preso ao solo como um rochedo, a alma contínua tão leve como no ínicio da refeição e de sonho em sonho vai viajando pelos lugares da nossa memória: para aquele Verão de 1987 onde comemos as melhores moelas de sempre numa castiça tasquinha da Mamarrosa (para quem não sabe, fica perto da Palhaça, alí para os lados de Bustos); para a cozinha das nossas avós que faziam os melhores rojões do mundo (se bem que nisso não há grande dúvida que os da minha avó é que são os melhores e mais nutritivos, além de terem tanta gordura, que me aquecem durante todo o inverno); para aquele dia em que chovia lá fora um Inverno sem fim, mas nós cá dentro aconhegavamos a alma com um belo e envinagrado arroz de cabidela, ao som quente de uma lareira a arder.
 
     Como já vimos, na mesa aliam-se três prazeres basílares da nossa cultura*: comer, falar da comida que se gosta, e recordar.
    
É a saudade...
 
    A saudade que temos de tudo aquilo que já passou, mas principalmente daquilo que já se rebolou alegremente nas nossas papilas gustativas. As nossas cabeças esquecem-se de muita coisa, mas o nosso estômago não elimina nada da sua memória teragigamegabitiana.
Para além de falarmos do que já comemos e dos pratos que mais nos excitam,(isto enquanto comemos), revelamos também a nossa "saudade de futuro" **quando por fim alguém pergunta (geralmente de boca cheia):
 
"E logo à noite o que é que vamos jantar?" 
 
(e Ó Meu Deus! como eu odeio quando alguém fala para mim com a boca cheia! a tensão que eu sinto! o medo tremelicante que no meio daquelas palavras se projecte um feijão mal mastigado para a minha cara)
 
Nota de pé de post: Não desenvolvo mais o tema porque os interessados no assunto devem dedicar-se à leitura de "Em Portugal não se come mal" de Miguel Esteves Cardoso, verdadeiro mestre da arte de pensar, observar e escrever, e um guru nesta matéria.
 
Ah!...Não falei de beber, (vinho claro está), porque nós bebemos como quem come.
 
 
*Isto só para citar três, porque existem milhares deles coexistindo nesta orgia cacofoniante e concomitante de prazeres que é a mesa portuguesa.
 
**Palavras de Fernando Pessoa, mais amante de absinto e poesia, do que propriamente de orelheira de porco.
 
 
 
Abreijos agri-doces.

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